quinta-feira, março 29, 2007

Recomeço

Tu...tu...tu...o som do telefone ocupado se mistura com o gotejar da torneira da cozinha. Desligo o telefone e pego o jornal. As mesmas notícias de sempre - assassinatos, seqüestros, as mesmas roubalheiras no congresso nacional de deputados e senadores. Os escândalos não mudam. O cenário sofisticado da minha casa também não. Não me falta conforto, não me falta comida, mas a chuva lá fora torna tudo ainda mais entediante.
Olho pela janela, vejo as gotas da chuva brilharem com a luz do poste, mas convenhamos, o poste não serve para nada mais além disso, afinal uma lâmpada de 100 watts não será capaz de dar a iluminação adequada a uma via de passagem de carros e pedestres à noite.
Começo a circular pela sala...frescor agradável, silêncio absoluto, exceto pela torneira que não pára de pingar e a chuva que mal se pronunciara – com o ambiente quase hermeticamente fechado, as ondas sonoras não conseguiram atravessar até o interior na sala.
É estranho, muito estranho você estar num lugar tão grande e sem nenhuma companhia, exceto (novamente) pelo gato que às vezes abre o olho, boceja e logo em seguida volta a dormir bem próximo ao abajur ligado.
Sento-me então à mesa de jantar, puxo um lápis e uma folha de papel (que já estavam por ali) e começo a rabiscar. Rabisco, rabisco e no fim não sai nada de concreto. Ah, mas que droga! Será que não existe nada de interessante para se fazer numa noite solitária e chuvosa como essa?! Então empurro o papel e jogo o lápis sobre a mesa. Levanto-me com vontade de chutar a cadeira, olho para ela, respiro fundo e coloco-a exatamente como estava - na linha perfeita em relação à suas recíprocas.
Pego a minha capa de chuva e o meu chapéu, vou dar uma volta na rua. A chuva riscando os meus óculos parece querer me poupar a visão. E quando chego próximo ao viaduto, me deparo com alguns mendigos. Estes estão deitados em pedaços de papelão imundos, com roupas rasgadas. Cobrem apenas parte do corpo com mais papelão. Os ratos são seus únicos companheiros além deles mesmos. Como é cruel ver tudo isso.
Alguns desses mendigos dormem, os que não dormem, no entanto, me olham assustados, outros me recriminam. O que mais me choca é aquela mãe com uma criança nos braços que não para de chorar. A mãe está tentando niná-la, fazê-la dormir...Pobre criança, nem imagina o futuro que a espera, se é que ela pode esperar por algum futuro.
Num ato espontâneo, pedi à mulher que me desse seu filho para que eu o segurasse. Ela olhou para o lado e um homem retornou o olhar com reprovação, porém ela, como aquele semblante infeliz, estendeu a criança até minhas mãos, e eu, como se nunca tivesse sentido tanta emoção na minha vida, coloquei-a junta ao meu peito, por debaixo da capa que estava usando. Foi com o calor do meu corpo que a criança acalmou-se. Aquela mãe mostrou-se tão espantada quanto aliviada, não somente ela como todos que presenciaram o acontecimento. Assim que a criança dormiu eu a devolvi para sua mãe. Não foi preciso dizer nada, mas eu sabia o quanto aquela mulher estava grata.
Voltei para casa pensativo...deixei os sapatos no tapete de entrada, levei a capa e o chapéu para a área de serviço. Estávamos encharcados. Fui então tomar um banho quente, bem quente, e enquanto a chuva continuava a cair lá fora, aquela ducha de água quente escorria sobre minha cabeça, sobre o meu corpo, e eu continuava a pensar. Pensava na minha solidão, pensava naquelas tragédias do jornal, pensava naqueles mendigos, e em especial naquela criança. A criança não me saía da cabeça.
Vesti o meu pijama, segui em direção ao meu quarto, deitei-me na cama, mas não conseguia dormir. Já era mais de meia-noite e o sono não chegava. Peguei o telefone disquei o teclado da memória. Chama...Chama...Alguém atendeu: Alô?
-Alô, filho, sou eu, seu pai
-Ah pai, é você?!...poxa, mas olha a hora! Amanhã tenho que estar na faculdade bem cedo! Que é que foi, hein?
-Nada, filho - falei quase engolindo a voz – É que me lembrei de você hoje. Amanhã é seu aniversário, não é?
- É sim, pai – ele respondeu sem paciência – mas você nunca se importou mesmo, pra você nem faz diferença se você tem filho ou não, agora, por favor, me deixe dormir!
- Está certo, meu filho. Mas antes de desligar eu preciso te dizer uma coisa.
- Ah pai, fala logo, eu to morrendo de sono!!!
- ...(então tentei engolir meu choro) - filho, eu só quero que saiba que eu amo você, e apesar dos erros que cometi durante todos esses anos, você é, foi e sempre será a melhor coisa que aconteceu na minha vida....
Tu...tu...tu...tu...Estava sendo muito difícil me controlar. Desliguei o telefone antes que pudesse ouvir uma rejeição. As lágrimas escorriam pelo meu rosto como um rio que deságua no mar.
De repente, o telefone toca, e antes que eu atendesse tentei recompor a minha voz que estaria rouca de tanto chorar.
-Alô
-Alô, pai?
-Filho! – as lágrimas começaram a surgir novamente, e os soluços apareceram com intensidade
-Ah pai, por favor, não faz isso – a voz dele também pareceu emocionada - eu também te amo. Apesar de o senhor nunca ter sido um pai presente, foi único pai que eu tive.
Ambos choravam ao telefone e se pediam desculpas...Nunca vou me esquecer desse dia. Amanhã tudo será diferente, a começar pela tarde que combinamos de passar juntos.

“Embora não possamos mudar o começo, podemos começar a fazer um novo fim”.

Escrito por: Nicole Príncipe Carneiro da Silva
25/06/2006

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